Artigo Concessão

Incerteza sobre a possibilidade de os municípios cobrarem o tributo influencia nas modelagens de concessão

27/05/2023

São diversas as competências administrativas atribuídas aos municípios pela Constituição Federal, que devem planejar as cidades, garantir a educação, saúde e saneamento básico aos cidadãos, entre tantas outras atividades – nas precisas palavras de Franco Montoro, “[n]inguém vive na União ou no Estado. As pessoas vivem no município”. É claro que faltam recursos para muitos dos 5.568 municípios brasileiros executarem suas competências constitucionais que justificam sua existência como ente federativo. Alguns identificaram uma forma de angariar recursos financeiros para a execução de suas atividades, a saber: cobrança de IPTU de concessionárias de serviço público.

Muita gente se posiciona contra, entendendo que as concessionárias de serviço público são privilegiadas com a imunidade recíproca, instituída pelo artigo artigo 150, VI, a, da Constituição Federal. O entendimento é o de que a cobrança de IPTU sobre imóvel pertencente ao ente federado (União, estados ou Distrito Federal), ainda que afetado à prestação de serviços públicos por concessionária, viola a regra constitucional que proíbe a cobrança de impostos entre os entes federados. Nesse mesmo sentido, pontua-se que a posse exercida pelas concessionárias de serviço público não se dá com animus domini, o que as afasta da condição de sujeito passivo de IPTU, impedindo a cobrança.

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou duas teses de repercussão geral: a) o tema 437, resultante do julgamento do RE 601720/2017, segundo a qual “incide o IPTU, considerado imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado, devedora do tributo”; e, também, b) tema 385, resultante do julgamento do RE 594015, a saber: ”a imunidade recíproca, prevista no artigo 150, VI, a, da Constituição não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese é constitucional a cobrança do IPTU pelo município”.

Ainda que as teses não tratem especificamente dos bens imóveis afetados à prestação de serviço público numa concessão de serviços públicos, os municípios mais ousados, utilizaram dessas teses para fundamentar a cobrança de IPTU, batendo na porta das concessionárias.

No início deste mês, mais uma reviravolta. Ao julgar monocraticamente o RE 1426679/SP, o ministro Nunes Marques manteve a decisão Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que havia reconhecido a imunidade tributária de imóvel desapropriado por concessionária de serviços públicos de transporte de passageiros.

Apesar de o ministro Nunes Marques entender, em seu voto[1], que a questão já é pacificada no âmbito do Supremo, quando se analisa os fundamentos da decisão, percebe-se que a questão está longe de ter um fim.

Os três precedentes[2] citados pelo ministro para ilustrar o reconhecimento da imunidade, pelo STF, às concessionárias de serviço público não tratam de concessionárias de serviço público. Na verdade, tratam da extensão de imunidade às empresas públicas, que integram a Administração Pública.

Não se está dizendo que a razão de decidir das decisões aplicáveis às empresas públicas não poderiam ser aplicadas às concessionárias de serviços público. Afinal, em uma concessão de serviço público, a afetação dos bens existe para possibilitar primordialmente a prestação de serviço público, tal como se dá quando se considera as empresas públicas prestadoras de serviços públicos. O que se está dizendo é que a fundamentação das decisões deve ser mais clara, diferenciando (e, eventualmente, aproximando) os institutos, a fim de dar a segurança jurídica que a questão merece.

Sem isso, o usuário de serviços públicos acaba sendo prejudicado. O fato de inexistir uma certeza quanto à (im)possibilidade de os municípios cobrarem o tributo influencia nas modelagens de concessão, e, também, os contratos administrativos já celebrados.

Veja, por exemplo, o impacto em contratos administrativos já celebrados. A depender da matriz de risco de um contrato administrativo, a repentina cobrança de IPTU deve gerar propostas de equilíbrio econômico-financeiro. Um dos mecanismos de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão é, exatamente, a revisão tarifária. Inclusive, o artigo 9º, §3º da Lei Federal 8.987/95 condiciona a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais à revisão da tarifa, depois de apresentada a proposta, para mais ou para menos, conforme o caso. Aqui, não se trata da criação de imposto sob o ponto de vista jurídico, mas é exatamente este o efeito jurídico que se tem quando se cobra repentinamente de concessionárias de serviços públicos tributo antes impraticável. Ou seja: tarifas poderão ficar mais caras, e o usuário perde.

Para evitar situações como esta, o nó da questão é a segurança jurídica. Ao fundamentar suas decisões, é necessário que os ministros se atentem aos precedentes da corte, justificando as razões de decidir, apontando os precedentes pertinentes.

[1] Nesse sentido: “não se afasta da compreensão do Supremo a respeito da matéria, que já se manifestou no sentido da extensão da imunidade recíproca às concessionárias prestadoras de serviço público de caráter essencial e exclusivo, sem intuito lucrativo” (Supremo Tribunal Federal, RE 1426679/SP, Min. Nunes Marques, j. 8 de maio de 2023).

[2] Foram os três precedents citados: (i) 2730-AgR, Tribunal Pleno, ministro Edson Fachin, DJe de 3/4/2017; (ii) ARE 1.354.360 AgR-terceiro, Primeira Turma, ministro Roberto Barroso, DJe de 13/9/2022; e (iii) RE 1.320.054, Tribunal Pleno, ministro Luiz Fux, Tema n. 1.140/RG, DJe de 14/5/2021.

Artigo publicado originalmente em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/concessoes-e-cobranca-de-iptu-quem-perde-e-o-usuario-27052023