Prática mostra que o poder normativo das agências reguladoras não deveria incomodar
Quando se imaginava que havíamos superado questionamentos sobre o poder normativo e a autonomia decisória das agências reguladoras, eis que surge uma nova tentativa de criar instâncias revisoras ligadas aos ministérios e secretarias correlatas.
A recente emenda aditiva ao Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória 1154/2023 retoma o debate da agenda regulatória dos primórdios da criação das agências reguladoras federais no Brasil de 1996. Segundo sua exposição de motivos, a função normativa das agências estaria infringindo o princípio da separação de Poderes. Esquece que há muito a administração pública e suas entidades exercem funções para além da aplicação da lei (função de executar), como a função normativa. Não é de hoje que órgãos como a Receita Federal ou entidades como o Ibama criam normas que interferem na esfera jurídica de particulares.
Mas a ideia aqui não é requentar os argumentos desse velho debate, que, embora fortes e exitosos em suplantar tentativas anteriores de restringir o poder normativo das agências, precisam dar lugar à experiência acumulada de mais de duas décadas de regulação pelas agências no país. É a prática regulatória que revela o resultado exitoso no campo da regulação em diversos setores econômicos e sociais, e é sobre ela que devemos nos ocupar.
A atuação das agências brasileiras tem sido internacionalmente reconhecida. A Aneel, por exemplo, recebeu o Prêmio 2021 Project & Infrastructure Finance Awards pela operacionalização da Conta Covid. A Anatel foi eleita como melhor órgão regulador de telecomunicações da América Latina, por sua atuação no combate ao telemarketing abusivo. Organismos multilaterais também reconheceram a qualidade da atuação das agências brasileiras a partir de métodos replicados a reguladores de outros países, como foi o caso do peer review da OCDE sobre a Reforma Regulatória no Brasil (2022) e o peer review da Aneel (2021).
Além disso, no passado recente, as agências tomaram decisões importantes diante de problemas regulatórios complexos e urgentes decorrentes da crise da Covid. Na área de saúde, a Anvisa foi diligente ao registrar vacinas contra o novo coronavírus, garantindo a sua distribuição aos brasileiros em meio à pandemia. Na área de transportes, as agências competentes foram certeiras em abordar o tema da queda de demanda como evento de reequilíbrio, reduzindo a insegurança jurídica da instabilidade gerada nos contratos de concessão.
Esse desempenho só foi possível porque nas últimas décadas houve importantes avanços na pauta da qualidade da regulação. Foram adotadas diversas ferramentas que conferem legitimidade, previsibilidade e aderência às decisões das agências. É preciso conhecer apenas três delas para compreender o processo normativo regulatório.
A primeira é a Agenda Regulatória, instrumento de planejamento que reúne em um documento o conjunto de temas prioritários a serem discutidos e regulamentados pela agência. Deve estar alinhada ao plano estratégico e ser construída considerando a capacidade operacional da agência. A cada dois anos, as áreas técnicas elaboram a minuta da Agenda e, após consulta pública, encaminham para deliberação da diretoria colegiada. Elas funcionam, portanto, como uma sinalização para o mercado e a sociedade civil dos temas que serão objeto de normatização, permitindo que qualquer interessado possa estudar o assunto, levantar dados e fazer articulações, inclusive o Poder Executivo central.
A segunda ferramenta é a Análise de Impacto Regulatório (AIR). Previsto um tema na Agenda Regulatória, será elaborada uma AIR pela área técnica responsável antes da elaboração de uma minuta de norma. Esse procedimento é composto por algumas etapas, que vão desde a identificação do problema regulatório e dos objetivos pretendidos, até o levantamento de dados e estimativas dos prováveis efeitos da norma. O relatório de AIR é submetido à consulta pública, sendo desejável a adoção de outras formas de participação ao longo da AIR. Ao final, a diretoria colegiada decide a partir das análises e recomendações resultantes desse processo. Durante as oportunidades de participação social ou de articulação com outros órgãos e entidades da administração pública e sociedade civil, o Poder Executivo central e outras partes interessadas também são convidadas a participar do processo normativo.
A terceira ferramenta é a já mencionada consulta pública, instrumento de participação e controle social largamente adotado pelas agências como condição para o processo normativo e seu planejamento. Esta ferramenta está presente nas já mencionadas Agenda Regulatória e AIR, bem como em outras etapas do processo regulatório. A agência disponibiliza os documentos produzidos ao longo do processo normativo para análise e recebimento de contribuições por qualquer pessoa interessada. Novamente, são muito bem-vindas as contribuições do Poder Executivo central e de quaisquer partes interessadas.
As três ferramentas são de adoção obrigatória pela Lei Federal 13.848/2019, regulamentada pelo Decreto Federal 10.411/2020. De maneira voluntária, já eram adotadas pela maioria das agências, embora seu procedimento não fosse homogêneo e a qualidade também variasse. Pesquisas empíricas demonstram pontos de melhoria das AIRs[1] e das consultas, que precisam ser idealizadas para propiciar a efetiva participação da sociedade civil organizada[2].
Nesse sentido, foram realizados esforços do governo federal na construção de guia e diretrizes para elaboração da AIR e são oferecidos cursos de capacitação, que têm como objetivo a disseminação de boas práticas na implementação efetiva dessas ferramentas.
As normas produzidas pelas agências reguladoras são elaboradas a partir de boas práticas institucionalizadas pela legislação federal e incentivadas por programas e iniciativas diversas, sendo objeto de constante análise crítica por órgãos de controle[3] e pesquisas engajadas na promoção da qualidade regulatória.
É essa a bandeira que deve ser levantada em 2023. Um artigo sobre o resultado e as propostas dessas pesquisas deveria ser e é mais pertinente e urgente no debate sobre qualidade regulatória. Igualmente pertinente e urgente é divulgar resultados e fortalecer programas voltados à disseminação de boas práticas regulatórias[4]. Mas ainda precisamos rejeitar tentativas de enfraquecimento ou redução do poder normativo das agências reguladoras.
Não temos tempo a perder com a discussão proposta pela emenda aditiva ao Projeto de Lei de Conversão da MP 1154/2023. Não deveríamos discutir se devem ou não ser criados Conselhos Normativos, que desconsideram os avanços concretos das agências reguladoras federais brasileiras nas últimas décadas. No lugar, precisamos levar o debate para a qualidade da atuação das agências.
[1] Cf: IBRAC. Observatório da regulação: uma análise empírica do passado e presente das agências reguladoras à luz da Lei Federal 13.848. São Paulo, SP: IBRAC, 2022; b) Uerj Reg. Análise de Impacto Regulatório: Panorama Geral. Rio de Janeiro, 2020; e c) PESSOA VALENTE, P.R. A qualidade da regulação estatal no Brasil: uma análise a partir de indicadores de qualidade, 2015.
[2] Cf: Relatórios de pesquisa do grupo Regulação em Números.
[3] TCU, Acórdão 2164/2021 – Plenário, Relator: Min. Bruno Dantas. Data da sessão: 15/09/2021; TCU, Acórdão nº 358/2017 – Plenário, Relator: Min. Augusto Nardes. Data da sessão: 08/03/2017.
[4] Exemplo é o Programa de Aprimoramento da Qualidade da Regulação Brasileira – QualiREG, uma iniciativa da Controladoria-Geral da União (CGU), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS) para diagnosticar a qualidade do ambiente regulatório e propor medidas para seu aprimoramento. Consultar: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/auditoria-e-fiscalizacao/qualireg/quali-reg. Acessado em 09/03/2023.
Publicado em 2023.
Artigo originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/mulheres-na-regulacao/o-estranho-caso-da-tentativa-de-criacao-de-conselhos-normativos-14032023