Desde 2021, a administração pública federal brasileira passou a ser obrigada a realizar Análise de Impacto Regulatório (AIR). A ferramenta, definida como obrigatória em duas normativas federais, permite que os entes públicos possam avaliar, com base em evidências, os impactos de diferentes opções para resolver um problema regulatório – o que os ajuda a tomar decisões mais eficazes. Essa exigência de realização da AIR aproxima o país de experiências já consolidadas, como Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, e em países latino-americanos que buscaram maior qualidade regulatória, como México e Chile.
Mas é importante reconhecer que a AIR, por si só, não transforma a cultura decisória do Estado. Trata-se de uma ferramenta procedimental de relativa complexidade, que só terá efeitos concretos se inserida em um ambiente institucional preparado para utilizá-la de forma técnica e contínua, com apoio da alta liderança.
Em outros países, não foi a previsão legal isolada que garantiu melhores decisões regulatórias, mas a combinação de regras claras, incentivos adequados e, sobretudo, capacitação dos servidores do Estado. Sem isso, a AIR corre o risco de se tornar apenas mais um rito burocrático – um formulário a ser preenchido para cumprir uma exigência legal – sem gerar transparência, participação social ou decisões fundamentadas em evidências.
Esse desafio não é exclusivo da AIR. Outras ferramentas de boas práticas regulatórias – como a avaliação de resultado regulatório, a agenda regulatória e o planejamento estratégico – enfrentam a mesma condição: sua efetividade depende diretamente do conhecimento técnico e do treinamento contínuo dos servidores públicos federais responsáveis por implementá-las.
É nesse ponto que a discussão sobre boas práticas regulatórias ganha relevo. O QualiREG – Programa para o Aprimoramento da Qualidade da Regulação Brasileira, coordenado pela Controladoria-Geral da União (CGU) em parceria com o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS) e o Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), busca enfrentar justamente esse desafio. Seus eixos são claros: mensurar a capacidade institucional das agências reguladoras, bem como sensibilizar e capacitar os servidores públicos que integram todos os órgãos, autarquias e fundações públicas federais para a construção de capacidades institucionais e consolidação de uma agenda de boas práticas regulatórias no país
Os esforços começaram em 2019, com a aplicação do Índice de Capacidade Institucional para Regulação (I-CIR) em formato piloto. A iniciativa ganhou corpo nos anos seguintes e, em 2021, foi elaborado o plano de capacitação do QualiREG a partir dos resultados da aplicação do I-CIR. Desde então, foram realizadas 10 capacitações em diferentes formatos, sendo 7 delas apenas entre 2023 e 2025.
Ao longo dos últimos quatro anos, mais de 250 profissionais já foram treinados em temas essenciais para a melhoria da regulação no Brasil. O impacto dessa iniciativa pode ser percebido no cotidiano dos reguladores, tanto pelo maior engajamento no uso das ferramentas de boas práticas quanto pela qualidade das decisões, que passaram a se beneficiar da experiência prévia de aplicar conceitos em ambiente de treinamento antes de incorporá-los aos processos decisórios reais.
Esse movimento é indispensável diante de um problema estrutural: a alta rotatividade de quadros. No nível federal, apenas 25% dos ocupantes de cargos comissionados permanecem no posto por quatro anos, e a rotatividade média anual chega a 30% (Lopez, F., & Silva, T., 2020). Sem uma política contínua de capacitação, a dispersão de conhecimento fragiliza qualquer tentativa de consolidar práticas inovadoras.
A redução de servidores efetivos agrava esse cenário. Entre 2016 e 2022, o Poder Executivo federal perdeu mais de 73 mil servidores (Painel Estatístico de Pessoal do Governo Federal). Aqueles que migraram para a iniciativa privada, de onde passam a demandar uma regulação mais transparente, baseada em evidências e aberta ao diálogo, impulsionando ainda mais a adoção dessas ferramentas. Sob essa ótica, a mobilidade é também uma oportunidade: treinamentos regulares permitem que novos grupos de servidores levem consigo, para suas novas funções, uma cultura regulatória de melhor qualidade.
A estabilidade institucional, portanto, não depende apenas de leis bem escritas, mas de um corpo técnico treinado, respeitado e capaz de aplicar métodos padronizados de análise de dados. O desafio brasileiro não é criar uma elite técnica por decreto, mas construí-la na prática, com cursos de curta e média duração, metodologias centradas em problemas reais e exercícios aplicados à rotina dos servidores. Primeiro, vêm os resultados; depois, consolida-se a reputação técnica — e só então a AIR deixa de ser vista como mais uma obrigação formal para se tornar um instrumento efetivo de qualificação do processo decisório.
Esse é o caminho para que a AIR e as outras ferramentas de boas práticas regulatórias deixem de ser promessa abstrata e passem a orientar, de fato, decisões públicas mais transparentes, racionais e legítimas. A construção de capacidade técnica é condição para que o Estado exerça suas competências com efetividade, e isso só se alcança com uma agenda ambiciosa, da qual faz parte o investimento contínuo na formação de servidores públicos. A escolha é simples: ou formamos equipes preparadas para pensar com base em evidências, ou continuaremos a ver leis bem-intencionadas produzindo pouco efeito prático. O futuro da regulação brasileira depende desse passo.
Publicado em 2025.
Artigo originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/efetividade-regulatoria-nao-se-decreta-se-constroi-com-capacitacao